Sentir, Saber, Ser

Conhecimentos sobre a biologia geral, e biologia humana em particular, são absolutamente essenciais para enfrentar os problemas que temos à nossa volta. A ideia de que poderíamos abordar problemas dos seres humanos sem conhecer os pormenores dos processos biológicos da vida é, evidentemente, uma ideia que não faz sentido.

O acontecimento número um do mundo natural é a vida e a nossa conceção da vida está, geralmente, dominada por aquilo que mais facilmente percebemos à nossa volta, aquilo que podemos ver, ouvir e tocar, as estruturas e processos manifestos.

Aquilo que sentimos, de bom ou de mau, tende a ser posto de lado e, muitas vezes, a ser visto como uma espécie de empecilho ou menos-valia. Pelo contrário, aquilo que acontece é que a forma de conhecer e saber aquilo que somos e o que é o mundo à nossa volta passa pelo sentir.

O sentir é o alicerce do ser e é o princípio daquilo que vai ser o nosso saber.

Sem haver o princípio do sentir, não é possível progredir no conhecimento profundo daquilo que são os seres humanos e tentar corrigir aquilo que está errado na sociedade.

O sentir começa, historicamente e de forma resumida, com o fenómeno da homeostasia, a regulação da nossa vida no interior do corpo. Quando a homeostasia – que é partilhada com toda a espécie de seres vivos – se combina com a presença de sistemas nervosos dá-se a possibilidade do sentir, o alicerce fundamental para se poder pensar. Etapas importantes e baseadas na ciência para nos permitir lidar com os problemas que nos rodeiam:

  1. Maquinaria do ser corporal: onde tudo começa, o ser corporal traz algo esplêndido e novo que é a possibilidade de consciência. Uma consciência básica a noção de sede, fome, bem-estar, mal-estar, dor, desejos, todos esses sentimentos básicos – ditos homeostáticos – permitem-nos aceder à consciência e trazem-nos conhecimento do que somos no momento;
  2. Maquinaria de perceção: perceção visual e auditiva, a possibilidade de imaginação, diversas capacidades cognitivas como a memória, o raciocínio ou a possibilidade de linguagem;
  3. Maquinaria das emoções: associada à anterior, baseia-se em certos processos motores que nos permitem, por exemplo, reagir a situações complexas, com medo, alegria ou compaixão pelos outros.

Todos estes processos permitem-nos uma consciência alargada daquilo que é o mundo e é isso que nos leva a uma algo extremamente importante: ter a noção da nossa própria precaridade. Ter a noção do risco para a nossa vida. E, também, o vislumbrar da felicidade e do que se pode chamar de florescimento humano. E daí, a possibilidade extraordinária para seres como nós desenvolverem qualquer coisa de novo, que não estava no plano da biologia, que é o desenvolvimento das culturas humanas.

Portanto, quando hoje olhamos à nossa volta e para fenómenos específicos, por exemplo a existência de medicina, de sistemas morais, religiosos e filosóficos, a existência de leis, de sistemas políticos e económicos, das artes e, até, da inteligência artificial, é tudo uma projeção daquilo que é a nossa própria vida, da regulação da vida no nosso corpo.

O curioso é que não se trata de uma originalidade ou invenção de coisas novas quando falamos das culturas, estamos verdadeiramente a utilizar uma projeção daquilo que nós somos biologicamente e com a nossa inteligência e capacidade criadora “inventámos” uma série de disciplinas e caminhos à nossa volta que têm um fito perfeitamente claro: regular melhor a nossa vida.

Conseguir o melhor equilíbrio para aquilo que é a vida humana.    

Excerto retirado da live talk do Professor António Damásio durante o evento Estado da Nação 2021 da Fundação José Neves, que pode ser visto na íntegra aqui:

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